A primeira foto que ilustra este desabafo foi tirada em 1965 numa Kodak que foi da minha mãe, falecida no ano anterior. Éramos pobres embora não faltasse o principal e hoje estou convencido de que tudo o que se precisa para ser feliz é o principal, o resto é ilusório.
Leia-se por principal o teto, a alimentação, o agasalho e substancialmente a deontologia do lar baseada em primeiro lugar na intensidade do olhar dos atores mais longevos com relevância ao dos em franca sedimentação biológica ascendente, estes estimulados à liberdade desde que orientados por aquele olhar. De resto é relativizar.
Morávamos com nossos avós e meu pai, que dividia-se entre a tarefa de Contador da empresa de peças de automóveis em Porto Alegre e a mesma função da Loja da “Dona Luiza”, minha avó, na Rua 1. De Maio 1099, em Niterói, Canoas, RS; a lojinha entretanto foi fechada dois anos após, porque os clientes compravam “no caderninho”, e não pagavam. – Não foi por causa de aviso do contador.
O pai ainda tinha funções domésticas que eram mais diletantismos do que trabalho; carpinteiro de mão cheia, marceneiro meticuloso, encanador e pedreiro contra vontade e eletricista PhD autodidata. Como lazer meu pai gozava do privilégio de ser exímio pescador, tão dedicado que nosso poço de água doce foi substituído pela rede pública de saneamento e virou um berço de carpas; paizinho fazia suas próprias chumbadas e linhas de espera, preparava seus anzóis com os nós mais elaborados e seguros que existem e conhecia como poucos cada pesqueiro na grande Porto Alegre, falo adiante de um desses pesqueiros. Ah Querida Cidade!
O vô era guarda noturno da maior tecelagem em Porto Alegre, no Caminho Novo, Voluntários da Pátria, onde, segundo um de seus causos que me contava (meu influencer da época), defendeu o famoso bandido Sete Cabeças; o cara era um homosexual que lutava como poucos, capoeira e karatê, talvez, pela descrição do jeito que lutava, daí o apelido; metera-se numa briga em desvantagem com vários outros bandidos, bem em frente à Tecelagem, e vovô contrariado com aquela injustiça socorreu o Sete Cabeças até que a turma fosse embora com medo do 45 com cabo de madrepérola que vovô cuidava com muito carinho e eu não podia aproximar-me mais do que um metro da coisa. De quinze em quinze dias vovô trazia um envelope azul desbotado com o dinheiro e deixava na cabeceira da cama, e era a vó Luiza que administrava as poucas notas de cruzeiros daquele envelope.
Nas horas vagas vovô era agricultor, do mesmo jeito que tinha sido agricultor em Amaral Ferrador, São Lourenço e Encruzilhada do Sul, desde criança, e teve que abandonar a Tubuna porque apareceram homens da cidade com sementinhas estranhas na mão, soja, dizendo que os plantadores da região teriam mais lucro por metro quadrado do que plantando arroz, feijão, aipim, milho e etc. Outros ainda seduziam os agricultores locais com as promessas do outro ouro orgânico da época, o fumo. Lá em nosso pequeno terreno eu ajudava vovô na capina ao redor dos pés de milho e entre um pé e outro o “feijão do tarde” (guris e gurias de hoje não tem idéia o que é isso); de aipim e batata doce também que dividiam o mesmo espaço por conta da época de plantio; ainda, dos tomates que conviviam quase à sombra de dois pés de mamão, próximos de um pé de ameixa e outro de limão, e ao lado da pequena parreira de uvas pretas, que por pouco não era encoberta pela frondosa amoreira que à tarde fazia sombra sobre a horta de alface, couve-flor, cebolinha verde, salsa e, às vezes, cenouras. Muitas vezes a salada no almoço vinha direto da terra para a pia a serem lavadas e ao prato. Uma vez por ano vovô carneava dois porcos, criados por nós, cujo chiqueiro eu ajudava a lavar vez ou outra, para mim um parque de diversão. Acredite, já montei a cavalo em um porco.
A vó Luiza, quando não estava fazendo fornadas de pão, bolachas de mel e cucas, cozinhava e produzia conservas que dariam para meses, caso outra greve (eles enfrentaram algumas) ou nuvens de gafanhoto lhes ameaçassem a dispensa de alimento; um quartinho ao lado da cozinha as prateleiras eram repletas de vidros de conserva, doces e salgados, linguiças e morcilhas peduradas e o fumo para os palheiros do vô; quando a vó não estava no fogão, ou no tanque lavando roupas com o sabão que ela mesma produzia, (desculpe a redundância a seguir) “roupas quaradas ao sol” com anil, ou cuidando das galinhas, acompanhando as chocas em cujos ovos no ninho eram marcados um X feito a cravão, estava costurando “para fora”, ela produzia peças de roupas sob encomenda, na antiga Singer tocada com o pé e a crochê, e para sua prateleira pronta-entrega soutiens de meias-taças a menina moça 42, de cheios com ou sem borracha aos enormes 54 com reforço; muitos deles eu pude ver as clientes provarem e meus olhos até hoje guardam aquelas nuvens enormes de leite com um pico em cada extremo sinalizando todos os sonhos que eu teria num futuro não muito distante… Isto também porque fui desmamado precocemente e, dizem, mamei em muitos seios de tias e vizinhas generosas. Eu tinha ou não tinha o principal?
Naquele ambiente aprendi em casa a ler, escrever e a tabuada, num caderno Sabiá, antes de ser matriculado no Jardim da Infância no Colégio São Paulo, de cuja paróquia me cai nas mãos um Sacrário, salvo da enchente deste 2024 enquanto escrevo aqui.
Querida Cidade! Lembro de enchentes e o cheiro de lodo ainda guardo na lembrança. Fui muitas vezes para o Colégio com água acima dos joelhos; pulei a cerca dos fundos para alcançar a rua Marechal Rondon que era mais alta, para ir ao Colégio, entrar pelo portão dos fundos e vestir o uniforme no banheiro, isso em meus 5, 6, 7, 8, 9 anos até os 15. Antes do sonho da rede pública de esgoto se realizar, as ruas eram de terra – valas a céu aberto, fedia. Um dia, a menos de cem metros lá da nossa casa, na figueira do campinho que ajudei a preparar para as peladas, o corpo de um homem apareceu pendurado por uma corda, enforcado; depois correu pela vizinhança a história de que o Paulinho Ignorante, bandido de Canoas, tinha sido o responsável. Não muito à frente no tempo, apareceu na passarela sobre a BR116, uma cabeça humana. Desta vez de boca-a-boca soube-se que fora o Caroço, outro bandido, rival de Paulinho, ele mesmo o decepador. Bem ali perto do campinho da Chacrinha onde joguei com os ainda não famosos Falcão e Batista, com este último compartilhei o ônibus urbano indo treinar nas categorias inferiores do Internacional. Ele já teria subido para os profissionais. Muitas lembranças de Porto Alegre, do Navegantes ao Passo da Areia à Lomba do Sabão e tudo mais. Mas a tristeza insiste em competir com o que era muito bom
Vi com meus próprios olhos o bairro Rio Branco com água na altura da cumeeira das casas, e flagelados ao longo da BR116, acima da Estrada de Ferro, hoje passeio do Trensurb. Lá para a Rua Iraí sempre encheu mais, mais perto do Gravataí, mas não chegava a inundar o terreno do Tio Cenizio cuja casa era bem alta do chão e no porão eram guardadas duas ou três barracas desmontadas utilizadas na Feira do Livro da Praça da Alfândega, que ele e tio Ozi, tio Volci e tio Aneci ajudaram a fundar, ao lado de renomados Editores, Livreiros e Escritores do Rio Grande do Sul; do Sr. Minerva ao Sr. La Porta, do Érico ao Galvani, do Mário Quintana ao Amaranto Preira, da Sulina, da Nacional, da José Olímpio, da Globo, da CEPAL e por aí afora… E onde joguei pelada com os engraxates da Praça, ao redor do chafariz. A bola sempre debaixo do braço, ou dentro do peito – boas memórias de meu repertório sinestésico. Até que um dia eu construí com as próprias mãos um caixa de engraxate pra mim. Aos nove anos eu já ensaiava criações de carpintaria naval, comecei recortando o Tio Patinhas e seus personagens, em retalhos de compensado do lixo de uma marcenaria da Rua Bagé; figuras pintadas com restos de tinta do pai; minha indústria infantil também contemplava jogos infantis da tradição oral embora eu ainda não tivesse contato com Bruegel.
Voltando a minha Querida Cidade, da pracinha dos frondosos jacarandás caminha-se até o Rio Guaíba, cuja ponte elevadiça teve como um dos mestres-de-obras o meu Tio Francisco, e dali podia-se ir a bordo de uma barca que subia o rio Jacuí, onde o pai pedia para o barqueiro aproximar-se do barranco na margem e pulávamos para um pesqueiro escolhido a dedo. Nunca vou esquecer que uma vez subiu tanto o nível do rio e o pai, meu melhor amigo de sempre, me amarrou no tronco de uma figueira lá em cima, “fica quitetinho aí que vou cuidar das linhas”, eu imaginando-me no filme Combate; dormimos daquele jeito, empoleirados, e pela manhã não pudemos descer até que as vacas e terneiros da fazenda local saíssem de sob a figueira. – Daria tudo para voltar lá...
E é aqui que aportamos na Querida Cidade, cada um de nós tem uma. E confesso, como António Torres, me acho desacordado e com as memórias incertas, olho para baixo e vejo a cidade inundada e pior ainda, de pernas para o ar, vejo tudo ao contrário, especialmente quando leio online as manchetes de jornais e publicações nas redes sociais. Quanta trágico-irresponsável maldade, quanto animismo egocêntrico, cortinas de fumaça oportunistas e idiotice seguindo as marés enchentes e vazantes das conqueluches midiáticas de toda sorte. Quanto sofrimento.
Isto é, de um lado as fatalidades produzindo saudosismos de minha infância esses revirados ao avesso, aquelas revisitadas em carne e osso e eu torturado pelas perdas que meus primos e primas, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas, amigos e amigas e conhecidos enfrentam hoje e conservarão doloridas no peito por muito tempo, pela vida…
De outro lado, é lançado este romance rio Querida Cidade de Antônio Torres, onde ele milagrosamente bem antes da calamidade no Sul dá um inequívoco golpe de mestre ao recordar sua vivência agrária e trajetória internacional pelas cidades do mundo, revisitando sua Sátiro Dias, no interior da Bahia, feito isso deste jeito mesmo, perdido e sem memória no topo de um edifício vendo uma cidade inundada. Inestimável entretenimento enquanto a reflexão lhe abre portas do presente onde você nem imaginava existiam sequer paredes...
Porque há solução para tudo, a propósito o Marcelo Torres, de Brasília, numa bela crônica lembra Paulinho da Viola “a vida, portanto, meu caro, não tem solução”: - tem solução sim, Paulinho, assim como aquela pelada no Jardim Botânico que jogamos contra o time do Pepeu Gomes, lembra? Tem solução ou você acredita que tem quando um amigo que jogou bola com você na infância, Gilberto Cunha, no Lansul de Esteio, viajou pelo mundo e retornou a minha Querida Cidade, Porto Alegre, para ser Padre. Ele acaba de me enviar a imagem do Sacrário publicada aqui e diz que este sacrário é meu, ele o resgatou na Igreja São Paulo, do antigo colégio de freiras e do mesmo nome, onde estudei 10 anos, hoje propriedade dos padres, La Salles.
Me ocorre que a Editora Record deveria colocar o autor de Querida Cidade num Sacrário online aberto, para todos terem acesso, comprarem o livro e tomarem como eucaristia o resignificado deste romance rio que é a vida de cada um de nós, o quanto as lembranças nos ensinam a melhorar os contornos do presente, um horizonte a mais.
Tubuna? É uma abelha preta com o ferrão atrofiado, mansinha desde que não lhe incomodem, faz a colméia no tronco de certas árvores e cada abelha para entrar ali tem que passar por um cone de cera; esta abelha deu origem a um apelido para a região de Amaral Ferrador e redondezas, e para quem nasceu ali, viveu ali. Agora, como dizia o meu avô: - me deixa quieto / me larga que eu tô bom / se eles vierem aqui eu cago eles a pau… (segue um emoji rindo de orelha a orelha, eoutro chorando, vocês escolhe o estado de espírito)
*Luís Peazê é escritor, cronista, jornalista e tradutor www.luispeaze.com
Seus livros Alvídia – Um Horizonte a Mais, Crônico – a história do gênero crônica, O Punhal de Pedra entre outros e a tradução de Por Quem os Sinos Dobram de Ernest Hemingway
Faz a gente pensar e refletir no que realmente é importante❤️❤️❤️