Com o perdão do trocadilho, as confluências me levam a plagiar Pessoa que foi publicitário, antes de ser aclamado poeta, como Antônio Torres escritor somente após ser redator de agências de publicidade no Brasil. Mas enquanto o Fernando com preguiça, ou talvez com medo da água, pulou direto para a poesia sem navegar em outros mares, Torres saiu da agência e aventurou-se pelo jornalismo, feito um Apolo saído do sertão nordestino brasileiro, para só então dar um mergulho sem fim na literatura.
Caro amigo leitor, considere o seguinte: tens nas mãos não apenas um só livro, Querida Cidade é como uma cidade mesmo, são vários – ruas, esquinas, praças, luzes, sombras, subidas, descidas. E tem gente, pessoas. Toda a obra de Antônio Torres tem personagens revisitados que eles mesmos, em muitos casos, se vestem com roupas diferentes e nos surpreendem, aliás, os próprios personagens surpreendidos o tempo todo. Depois de ler você fica se perguntando: - não terei que ler novamente aquele livro, ou o outro mais uma vez? Sabe aquela história do “romance rio”? Foi assim que Antônio Torres escreveu no asfalto em São Paulo, na serra do Rio, Chevalier des Lettres em Paris, fugitivo num taxi em Áustria, escreveu Canibal! Digo, Cunhambebe! Sequestrador feito uma fonte que brota como um riacho, que vai, vai, cresce até desembocar no mar.
Sabe aquela frase daquele jogador de futebol, Mallarmé: “A vida foi feita para acabar num livro”? Torres levou-a ao pé da letra. Aliás, em seu repertório os homens são aprisionados em dado momento e de tanto andarem pra´ lá e pra´ cá ficam com os Pés Redondos. Um belo dia o autor desapareceu, se mandou para Portugal e, dizem as más línguas, foi lá que ele ficou infectado por esse vírus: escrever. Agora, meninos eu conto, dobrando os 80 anos, meio século escrevendo, publicando e subindo à ribalta pelos quatro cantos, viajando ao redor da Terra, isso mesmo, Essa Terra que a todos nos há de comer. Seja um cão uivando para a lua, ou lobo, seja você um cachorro ou um gato azul, visto pelo fundo da agulha ou o centro das desatenções…
E peço perdão mais uma vez pela associação reversa, Antônio escreve tanto a tal ponto que parece debochar da Inteligência Artificial que graça na rede; indo direto ao ponto, Antônio Torres nos faz ler sem parar, e, se isso já não fosse tudo, nos faz ler as suas páginas de trás para frente. É assim, você lê achando que está indo para um lugar e, toma, quase sem querer volta para corrigir o rumo; quando avança, encontra mais coisas que não havia encontrado antes, como se o mergulho no mar de sua criação literária, que de nordestina não tem nada de árida, fosse de águas ora mais rasas, ora mais profundas. Água por todo o lado e nos vemos na pele do personagem que não sabe como chegou ali, no topo daquele edifício, na Querida Cidade. Talvez não seja por acaso que passou a chover tanto onde havia tanta seca, e o mar vá virar sertão. Daí a lembrança de que primeiro estranha-se, depois entranha-se – o primeiro slogan da Coca-Cola, criado em Portugal por Fernando Pessoa, comercial aquele que ajudou a banir o refrigerante por décadas, mas isso é outra coisa.
E é só o começo.
Numa bela noite fria mas agradável, num dos bairros mais aprazíveis e ilustrativos de Lisboa, o Príncipe Real, na Travessa do Rui, você entra para ver e ouvir o lançamento do livro e sente-se parte de uma árvore de Natal com escritores no lugar das bolinhas, autor e editor anfitriões no lugar do presépio, em pleno mês de fevereiro. Se me permite fazer outra associação, eu que sempre vi a vida como estar num comboio desenfreado descendo a montanha, com meio corpo para fora tentando me agarrar aos galhos que passam, o lançamento de Querida Cidade foi como passear num trem lentamente sem a menor vontade de ver o que se passa lá fora. Apertadinho ali, o vagão cheio de gente desarmada sem medo que o perigo do dia a dia não inexista.
Trem? Veja em outro vagão quem estava. Enquanto eu lia Querida Cidade, me chega ao colo nada mais nada menos do que Machado na Intimidade, do Capitão Sombra, meu amigo (eu tinha que dizer) sobrinho do Machado de Assis, sério, dia 23 daquele mês de vinte e poucos dias, no ano de 2023, enquanto leio um livro de quem está sentado na cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, esse tal de Antônio Torres que vos falo, cadeira tal que foi propriedade do bruxo do Cosme Velho e cujo patrono foi José que escrevia ao correr da pena Alencar…
Veja ilustre passageiro, esse tipo faceiro sentado ao seu lado. Não sabe? Salvou-o a boa leitura. Para mim Querida Cidade é isso: um biotônico fontoura geração milênio, ou geração "uai" no bom mineiro da Califórnia, a velha geração Y. Isto posto, primeiro, não queira devorar de uma só vez, deixe o apetite abrir sem pressa. Segundo, garantido o investimento, deixe o Jeca Tatu desvairado que habita algum lugar de seu universo particular calçar sapatos até nas galinhas.
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Antônio Torres (Sátiro Dias, 13 de setembro de 1940) é um escritor brasileiro, ocupante da cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras. É também membro da Academia de Letras da Bahia na qual, desde 2015, passou a ocupar a cadeira 9, na sucessão a João Ubaldo Ribeiro, membro da Academia Petropolitana de Letras, e sócio-correspondente lusófono da Academia de Ciências de Lisboa. Biografia completa em>>>
Um cão Uivando para a lua (1972)
O Homens Dos Pés Redondos (1973)
Essa Terra (1976)
Carta ao Bispo (1979)
Adeus, Velho (1981)
Balada da Infânica Perdida (1986)
Um Táxi para Viena D´Áustria (1991)
O Cachorro e o Lobo (1997)
Meninos, eu Conto (1999)
Meu Querido Canibal (2000)
O Nobre Sequestrador (2003)
Pelo Fundo da Agulha (2006)
Minu. O gato azul (2007)
Sobre Pessoas (2007)
Querida Cidade (2021)
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