Morei em muitas ruas, no início foi na Primeiro de Maio, a última antes da Jornalista António Ferreira na grande Lisboa foi na Praia do Flamengo, antigo caminho de burros que saíam do Castelo, ia-se buscar água onde hoje é Botafogo, ou para se atingir as quintas dos abastados da época ainda oficialmente colonial, que hoje é a exibida zona sul da Cidade Maravilhosa. E é numa daquelas esquinas, do Flamengo, que José mora e vende livros doados por quem se sensibiliza com a sua condição, e ocupação. José tem 59 anos e mora na rua, na acepção nua e crua de um indigente e o conheci pela reportagem da jornalista Ana Terra Athayde para a BBC (2/10/2018). O vídeo da própria Ana Terra é comovente. Coincidência pouca é bobagem, Ana Terra é para mim a principal personagem, ao lado do Capitão Rodrigo, de O Tempo e O Vento de Érico Veríssimo, talvez um dos títulos expostos no chão da calçada, pelo José.
Outra história, é a de um foragido (procurado por furto), o Lindomar, nome roubado de seu irmão do interior do Rio Grande do Sul, descoberto por uma reportagem numa esquina de bairro nobre de Porto Alegre, vendendo livros usados…
Essas histórias podem ser encontradas às dezenas, se não centenas ou talvez milhares, numa rápida pesquisa no Google. Uma delas eu esbarrei caminhando pelo Facebook, a história do Luís Silva publicada pelas assíduas Ana Luísa Alvim e Cláudia Sanches da Câmara de Lisboa | #CML #lisboetas #Lisboa
Republico ipsis litteris as histórias do José e do Luís… Essas histórias me fizeram vislumbrar automaticamente uma perspectiva curiosa: esses vendedores singulares de livros, rejeitados, os vendedores e os livros, na rua, no chão, na terra, podem estar exibindo primeiras edições de obras singulares, ou até mesmo obras raras, enquanto no topo da cadeia produtiva do publishing clamam os seus atores e stakeholders por subsídios e incentivos para animar o mercado (dizem), estimular o hábito de leitura, aumentar a literácia dos jovens e dos nem tanto muito adultos no mais amplo sentido do termo. Entre um extremo e outro dessa perspectiva potencialmente ácida, a caravana passa, e eu, passarinho, plagiando Mário Quintana…
Aproveito para deixar o convite para o leitor embarcar na contagem regressiva para o Dia Mundial da Língua Portuguesa.
Luís Silva, vende livros na Feira da Ladra, há 16 anos.
“Aconselho a todos a ler, porque permite parar e relaxar. Ler é muito importante.”
Chamo-me Luís Silva, nasci no Beato e vivo no Bairro Lopes, onde todos se conhecem e que parece uma aldeia. A minha família é conhecida como “Os falta de ar“, pois o meu padrasto, que era sapateiro, sofria desse problema.
Sou um lisboeta típico, nunca vivi noutra cidade. Estudei só até à quarta classe. Aos doze anos já trabalhava como carpinteiro. A vida era dura, ia buscar comida à Sopa dos Pobres, no Barroso, em Marvila, para toda a família.
Todas as terças-feiras e sábados rumo agora à Feira da Ladra para vender livros. Há 16 anos que esta é a minha rotina, mas na juventude fui campeão de matraquilhos.
Além de jogar à bola.
Foi aos 12 anos que comecei a jogar matraquilhos. Depois com o tempo, chegou a minha vez de jogar e vencer: fui campeão de matraquilhos. Toda a gente gostava de jogar comigo, porque era o melhor no Parque Mayer.
Ninguém nos ganhava, cheguei a marcar golos de cabeça com os bonecos.
Vendo livros há 16 anos. Comecei a vender por necessidade, não havia trabalho em lado nenhum e fui obrigado a virar-me. Tive que me fazer à vida.
Por aqui, já passaram muitas caras antigas e outras novas à procura de uma nova leitura: Vendo livros de todo o tipo. Tenho 80 mil livros divididos por dois armazéns e sei mais ou menos o resumo de cada um.
O contacto com as pessoas é, sem dúvida, o que eu mais gosto. Principalmente, quando me pedem ajuda para escolher livros. Com a idade que tenho não paro um bocadinho, ando sempre de um lado para o outro.
Adoro ler e vender livros“.
O morador de rua que vende livros para sobreviver
Reportagem e vídeo: Ana Terra Athayde BBC 2 outubro 2018
José Marcos de Souza, de 55 anos, costuma levantar cedo, ainda de madrugada. Ele desfaz a cama, guarda seu colchonete em um carrinho de supermercado e organiza os produtos que vende em uma calçada.
Morador de rua há 3 anos, Souza vive da venda de livros doados em uma esquina da Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro. Pela manhã, faz questão de desejar "bom dia" e "bom trabalho" aos que passam.
Conhecido de muitos moradores e trabalhadores da vizinhança, ele recebe doações a todo momento. Não apenas de livros, mas também de roupas, calçados e comida.
Apesar disso, enfrenta hostilidade de pessoas que vivem na região do seu ponto de venda. Na primeira semana de setembro, Souza e alguns de seus livros foram atingidos por ovos lançados de um prédio. Agentes da prefeitura já chegaram a ser chamados numa tentativa de retirá-lo do local.
"Viver na rua é amargo. Você tem que ouvir um monte de desaforo sem poder reagir, sem poder se defender", diz.
Marcos combate a intolerância com simpatia e poesia. Ele, que estudou até o nono ano (antiga oitava série) do Ensino Fundamental, diz que Carlos Drummond de Andrade é um de seus autores preferidos. Com frequência, escreve em um caderno que guarda em uma das malas.
"Quando cheguei na rua, eu não tinha nada", conta. Souza vivia com a família da irmã em Niterói, região metropolitana do Rio, mas saiu de casa após um desentendimento familiar. Ao longo da vida, colecionou trabalhos temporários: foi caseiro, repositor de mercadorias em supermercado, balconista e garçom.
"Muitas pessoas hoje me veem na rua e me condenam, achando que sou um viciado, um monstro, um pedófilo. Mas não, eu vim para a rua para conseguir a minha própria casa e não ficar dependendo de parente", explica.
"O povo tem que parar um pouco para pensar e ver quantas pessoas nas ruas estão precisando de ajuda. Quem está na rua não é ladrão. Quem está na rua tem necessidades."
Segundo a prefeitura do Rio, o levantamento Somos Todos Cariocas, realizado no dia 23 de janeiro deste ano, contabilizou mais de 3,7 mil pessoas vivendo nas ruas da cidade. Outras 913 estavam em abrigos.
Souza já passou uma temporada em um centro de acolhimento em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio, mas diz que se sentiu deslocado.
"O que eu vou fazer num abrigo onde só há dependentes químicos? Será que eu não estava tirando a vaga de alguém que precisa?", pondera. "Falei que não era um lugar para eu ficar. Eu preciso de uma casa, não de um abrigo."
O vendedor de livros deposita todo o dinheiro que sobra em uma conta bancária. Ele sonha em comprar uma casa em Governador Valadares, cidade mineira onde seus pais viveram.
"Eu gostaria que as pessoas me vissem como um ser humano. Um ser humano que está tentando vencer na vida. Já que não posso trabalhando honestamente, qual seria o jeito melhor para eu vencer? Será que é roubando, matando as pessoas? Não, eu não acho certo. O certo, para eu poder vencer, é vender os meus livros. É a única maneira."
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