Apesar de flutuar pela mídia mundial algum tempo, caiu no esquecimento a denúncia da Procuradora-geral dos Estados Unidos, Loretta Lynch (2015): «Constatámos que a FIFA é corrupta até às suas mais altas esferas». Mas o jornalismo não pode fugir à responsabilidade por boa parte desse fenômeno ambivalente que é o Futebol, que transporta significados positivos e, pelo menos um, bem difuso. Esta semana explode nas manchetes que a FIFA pode punir a CBF, porque a Câmara de Direito Privado do TJRJ nomeou José Perdiz, presidente do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva), como interino por 30 dias para que conduza uma nova eleição.
O Futebol 10 x 0 no Estado de Direito é o “livro-reportagem” lançado às vésperas da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, e destaca esta face difusa, possivelmente despercebida do grande público e mesmo dos seus principais atores. Um fenômeno mundial, paradoxalmente inibido na mídia, porque a imprensa de um modo geral, nas poucas vezes que aborda a face maligna do DNA da franquia Futebol, o faz pelo ângulo – plausível – dos escândalos de corrupções e distorções do gênero dos organismos mundiais que operam o Futebol, e nunca, com profundidade, pelo ângulo que o esforço do livro pretende alcançar.
Lê-se na mídia a carta e email enviados à CBF pela FIFA e sua “sucursal” na América do Sul, o CONMEBOL, com sede no Paraguai, um pseudo-paraiso fiscal sem saída para o mar. Nessa correspondência (imagem abaixo), aquelas entidades privadas-associativas “advertem” sua “subsidiária”, a CBF, ser passível de punição porque o aparato jurídico e do direito comum brasileiro teria agredido um certo artigo de seus estatutos, no caso o Art. 14 que diz:
“(…)os membros associados da FIFA são obrigados a gerir seus assuntos de maneira independente e sem influência de terceiros, incluindo quaisquer autoridades estatais.
Qualquer violação dessa obrigação pode resultar em potenciais sanções, como previsto no Estatuto da FIFA.”
O Futebol atingiu um estágio de maturidade tal que seu significado e significantes se distanciaram infinitamente das suas origens. Do jogo com a cabeça de um inimigo derrotado, temos o que temos hoje, nos campos de pelada, nos relvados mais sofisticados, nas telas de bares e smartphones, no sonho de torcedores fanatizados… E este é apenas um dos ambientes sociais abordados pelo Futebol 10 x 0 no Estado de Direto, mais precisamente, como a FIFA corrompe o Estado de Direito, vence-o de modo esmagador indiferente à vontade intrínseca do coletivo no mais amplo sentido do termo, da liberdade e direito comum.
Há ainda uma complexidade pertinente ao Futebol que permeia tanto o “jogo” em si, quanto os seus espectadores, in loco e via televisão ou internet, em plataformas domésticas, fixas ou móveis. Para os atores envolvidos no aparato do espetáculo, o Futebol é um negócio multitudinário. E quando a palavra negócio entra em jogo, tudo muda de fato e as pessoas, os seres humanos envolvidos, são apenas coadjuvantes, o que conta é o negócio. Se, ao final de cada jogo de futebol profissional, passasse uma lista da ficha técnica das empresas e profissionais engajados, como no cinema, 90 minutos não seriam suficientes.
Para os atores que assistem ao espetáculo, o Futebol é lazer ou entretenimento; para muitos deles é até algo mais, uma necessidade visceral, não se envolvem com o Futebol para ganhar dinheiro, profissional ou informalmente, são os tipos de torcedores que não apreciam o Futebol necessariamente para se divertirem ou se distrairem, eles sofrem, eles invariavelmente chegam a um êxtase ou são tomados pela ira, se engajam em debates temperamentais que estimulam graves idiossincrasias.
Poucas manifestações humanas coletivas se internalizaram tão intensamente nos mais variados tecidos antropossociais.
Portanto, o signo original “Futebol” nada mais tem a ver com a sua origem: pé + bola (uma parte do corpo humano com 29 ossos e nenhum músculo que conduz uma esfera sintética inflada com ar, peso e pressão atmosférica padronizada).
Não bastasse o poder atômico do Futebol despertar motivações para sonhos pessoais, de vida mesmo, ainda provoca manifestações exacerbadas de paixão, inclusive hereditárias, individuais e coletivas, de consequências frequentemente dolosas, de naturezas morais, físicas e patrimoniais.
A crônica esportiva construtiva é minoria, enquanto a que não acrescenta nada, ou ainda destrói, é enorme. No mínimo, se este argumento estiver equivocado, e injusto, pode-se afirmar que as manchetes espetaculosas ocupam mais espaço do que as reportagens e críticas construtivas, ou o jornalismo esportivo investigativo, que é inexistente.
O resultado desse jogo é uma goleada de 10 x 0 do Futebol no Estado de Direito. O Futebol, em pleno século XXI, essa atividade humana coletiva, capaz de mobilizar milhões de pessoas, comandado nas suas mais altas esferas por quatro membros institucionais (IFAB), que se reúnem apenas duas vezes por ano, e um presidente com poderes robustos eleito de modo discutível, por alguns poucos indivíduos (FIFA) versus o Estado de Direito, a que todos os cidadãos de bem do mundo estão submetidos. Assim, pretende-se demonstrar como o IFAB/FIFA vem vencendo este jogo, sobrepujando cidadãos e o Estado, desde sempre.
É uma característica de nossa época de desenvolvimento, enquanto seres humanos agregados em sociedade, o pleno exercício do Estado de Direito, essa situação jurídica, ou sistema institucional no qual cada parte é tutelada pelo Direito; do indivíduo comum à entidade privada ou potências públicas de toda sorte; mas o Futebol escapa desses limites. Gravita numa esfera paralela ao Estado de Direito, e apropria-se de seus mecanismos apenas oportunisticamente.
Deveria ao menos intrigar a estrutura de gestão e comando do Futebol no mundo, observada pelo organograma funcional da FIFA; o próprio estatuto, o poder e regime de trabalho que suporta o órgão que está (simbolicamente) acima da FIFA, o IFAB (International Football Association Board), Conselho da Associação Internacional de Futebol. Daí essa investigação, junto a fontes diversas, entrevistar especialistas e inclusive pesquisar a história do futebol de ângulos pouco ou nada explorados pelo jornalismo esportivo, o caso da antropologia social e do direito.
Nessa última área foi encontrada pouca referência à suspeita original, mas o suficiente para valer a pena ecoar além dos seus hermetismos. Um artigo da Profa Conceição Gomes, pesquisadora do Observatório da Justiça de Portugal, dá o tom necessário para embasar a pertinência deste livro-reportagem.
“(...) O Estado face à organização desportiva: A organização desportiva do futebol desde a sua génese apareceu ligada a pessoas colectivas de direito privado. Surgindo como instituições de base independentes do Estado os clubes haviam de desenvolver consequentemente um conjunto de normas adaptadas às suas exigências e finalidades, o que significa que o peso do Estado na regulamentação das relações desportivas era quase nulo.(...)
...nesta interacção jurídica à margem do direito oficial, mas convivendo com ele, situa-se o direito desportivo e concretamente o direito do futebol que pelas suas características se destaca marcadamente destes direitos e diferentemente deles regista, face ao direito oficial, uma estrutura verdadeiramente homológica. (...)” Profa. Conceição Gomes
Ao mesmo tempo em que o IFAB e a FIFA deram o pontapé inicial para a existência do Futebol como ele é, o Futebol caminhou sobre as próprias pernas, foi tomado por todas as classes sociais, cresceu ao seu modo e multiplicou-se, tornou-se algo maior do que se supunha originariamente, e o IFAB e a FIFA foram apropriando-se desse algo maior paulatinamente.
Questiono: é concebível que o Futebol seja regido à parte do Estado de Direito a que todos nós e nossas instituições estamos tutelados? Mesmo que, pela ótica da jurisdicidade, ou pluralismo jurídico, o Futebol coexista em sua esfera própria do Direito, com seus mecanismos próprios e muitas vezes dependentes do “nosso” Estado de Direito, isso seria inconcebível. Mas é assim que o Futebol funciona e é disso que trata este livro-reportagem, porém, estritamente na sua noção de esporte, quanto ao seu espírito esportivo profissional.
O Estado de Direito é uma invenção das democracias, sua gênese está nas idéias de Montesquieu (França, 1748) ao longo de toda a sua obra máxima, O Espírito das Leis. Assim como o pensador francês imaginou uma alma para algo abstrato que viria a reger a convivência entre os indivíduos, isto é, para nascer e seguir sua vida qualquer Lei no ambiente do Estado de Direito deverá obedecer aos contornos de uma mesma alma, imagino que o Futebol tenha se transformado num fenômeno da nossa civilização porque prosperou a partir desta homologia.
Teria o Futebol uma alma universal e, por isso, deveríamos respeitar os princípios desse ente intangível? Respeitar os princípios do Futebol, talvez, mas não quer dizer que devêssemos no submeter a uma instituição privada, mantenedora da franquia Futebol, que existe com o objetivo de lucro, com poderes para corromper as leis dos países que pretenderem se beneficiar da potencialidade sócio-econômica do futebol.
É provável que a crônica esportiva, através dos tempos, venha cometendo o grave erro de alimentar essa distorção conceitual do Futebol em relação à estrutura filosófica institucional em que nossa era funciona. Influencia milhões de vidas humanas em detrimento de sua liberdade de escolha, entre outras, deixando de informar fatos extra-jogos, dedicando pouco tempo para a discussão sobre o poder superdimensionado da FIFA, por exemplo, em função, talvez, de estar mais dedicada a entreter os espectadores, estimular suas paixões cujo magnetismo envolve a todos, incluindo os próprios cronistas.
O Futebo 10 x 0 no Estado de Direito, “livro reportagem”, terá alcançado o seu objetivo se obtiver a interação, crítica ou adesão de interessados de áreas distintas do âmbito acadêmico, docentes e discentes, das esferas estatais do legislativo, executivos e jurídicas, de instituições e indivíduos, e com mais sorte ainda dos profissionais do Futebol e do público em geral.
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