Afonsinho, o primeiro romance a gente nunca esquece.
- Luís Peazê
- 22 de abr.
- 5 min de leitura

A Moreninha foi o meu primeiro romance brasileiro. Entrei na história, fiquei imantado por vários dias, nunca mais esqueci, foi na segunda série do ginásio. Acho que o gosto pela leitura começou ali. E o primeiro romance brasileiro, publicado em 1844, tem lugar na Ilha de Paquetá, uma fortuna do mar encontrada no fundo da Baía da Guanabara pelos franceses onde tentaram implantar a França Antártica e os portugueses não deixaram. E foi em Paquetá que, neste sábado 10/12/2012, viajei ao passado no Trem da Alegria, é, trem numa ilha, conduzido pelo maquinista Afonsinho, inesquecível.
Afonsinho, para os poucos que não sabem, escreveu um capítulo inteiro da história do futebol brasileiro. Um dos capítulos mais dramáticos, e mais ricos em importância para a coletividade. O título do capítulo é “:1970, o primeiro passe livre para jogador de futebol obtido na justiça”; longo, e repleto de fatos marcantes especialmente porque aconteceram no pior do anos de chumbo, durante a ditadura de Médici. Há um documentário, aliás pioneiro, sobre o episódio que se arrastou por vários anos com muita intensidade, na mídia e na vida do personagem central. Mas a história completa merece um longa metragem.

Pois, neste sábado, coloquei no meu curriculum vitae uma realização que poucos conseguiram na vida: recebi dois lançamentos à meia distância, milimétricos, dos pés de Afonsinho. Após mais de 20 anos sem jogar uma pelada, este presente de Natal; no primeiro me atrapalhei com a bola e torci o joelho, no segundo dei um passe errado para um companheiro, em vez de chutar para os fundos da rede. Não importa, os filhos tortos também devem ser guardados no coração.
Foi o amigo Felipe Magalhães, quem me apresentou Afonsinho que patrocinava um almoço com direito a partida de futebol contra o Pau Grande, time da cidade onde nasceu Garrincha.
Afonsinho jogou com Garrincha, Pelé, Carlos Alberto Torres, Jairzinho, Paulo Cesar Caju, a constelação é tão grande que não cabe numa crônica. Afonsinho jogou no Botafogo, Santos, Flamengo, Olaria, Fluminense, Vasco, em outra ordem no tempo, mas a sua história não pode ser contada linearmente porque sua passagem pelo futebol foi de vanguarda, ele anteviu o futuro, fez antes de todos o que hoje não caberia na cabeça de qualquer homem comum inexistir.
Veja apenas o seguinte episódio, ocorrido com Zagallo: véspera da Copa do Mundo do México, treino do Botafogo, Afonsinho é chamado num canto, pelo treinador e um dirigente, e ouve uma risível advertência, que na época não teve a menor graça, patética, trágica, especialmente vindo de alguém que simboliza tantas conquistas para nós brasileiros. Zagallo disse a Afonsinho que com sua barba por fazer e o cabelo comprido desgrenhado ele parecia tudo, tocador de guitarra, cantor de iê iê iê, menos jogador de futebol – e ainda acrescentou – veja, você é diferente de todos, assim não dá. Ficou marcado, naqueles tempos, como subversivo, inconformado, polêmico, não importava se fizesse tudo isso com ternura. Curiosamente, Zagallo viria a ser conhecido, entre outras coisas, pela frase: “vocês vão ter que me engolir”, cheia de gana e mágoa. Traços que inexistem na personalidade carismática de Afonsinho.
Filho de ex-ferroviário e educador, Afonsinho aprendeu em casa a defender seus direitos de cidadão. Até então, os jogadores tinham contratos nebulosos, ficavam literalmente na mão dos clubes, uma idiossincrasia levou a outra e de repente Afonsinho era a ovelha negra, quando as ovelhas brancas eram não menos do que vaquinhas de presépio, ou, pior ainda, jogadores escravos. O próprio Pelé declarou numa entrevista à beira do campo, que o único jogador livre, que não era escravo, chamava-se Afonsinho.
Toda a história é linda, mas desta tarde em Paquetá vou guardar para sempre uma beleza que só cabe em um romance, na intimidade do livro nas mãos e mais nada, sobre esse personagem Afonsinho. Sua simplicidade e despojamento daqueles traços da vaidade que enfeiam o ser humano, sua amabilidade em tratar a todos ao alcance de seu abraço, o sorriso desarmado e que desarma a gente, a generosidade em pessoa, alegre naturalmente sem transbordar. A música que Gil fez para ele, na voz do próprio Gil ou da eterna Elis sintetizam melhor o prezado amigo Afonsinho (ouça no link).
Antes do apito nostálgico, da chegada à estação final, um aviso: Trem da Alegria é o nome do time que Afonsinho fundou há 35 anos, para manter em forma jogadores com passe livre sem time profissional para jogar. No Trem da Alegria jogaram Garrincha, Paulo César Caju, entre tantos famosos e desconhecidos bons de bola. Foi nesse Trem da Alegria que eu joguei 20 minutos, ao lado de monstros to naipe de Jair Marinho (ídolo do Fluminense, reserva de Djalma Santos na Seleção de 1962, não é pra qualquer mortal) e Nei Assunção, ídolo do Botafogo que fazia aniversário neste sábado. A primeira vez que joguei no gol, ora, Afonsinho estava saindo do meio-campo para substituir o goleiro que não ia bem, corri do banco de reservas e gritei com ele: - não Afonsinho, no gol não, quero ver outro balãozinho e o teu toque de bola, fica lá no meio nos dando alegria. No segundo tempo fui para a ponta direita, e, bem... Apesar das minhas furadas, a primeira vez a gente nunca esquece, sai com o joelho espatifado, morrendo de dor, mas rolando no chão de tanta felicidade.
Paquetá deixou no cais A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, 1844 primeiro romance publicado no Brasil.
"A Ilha de... é tão pitoresca como pequena. A casa da avó de Filipe ocupa exatamente o centro dela. A avenida por onde iam os estudantes a divide em duas metades, das quais a que fica à esquerda de quem desembarca, está simetricamente coberta de belos arvoredos, estimáveis, ou pelo aspecto curioso que oferecem. A que fica à mão direita é mais notável ainda; fechada do lado do mar por uma longa fila de rochedos e no interior da ilha por negras grades de ferro, está adornada de mil flores, sempre brilhantes e viçosas, graças à eterna primavera desta nossa boa Terra de Santa Cruz."
Meio de campo (letra)
Canção de Gilberto Gil ‧ 1973
Prezado amigo Afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
e eu não sou Pelé nem nada
se muito for, eu sou um Tostão
Prezado amigo Afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
e eu não sou Pelé nem nada
se muito for, eu sou um Tostão
fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão
Prezado amigo Afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
desprezando a perfeição...
Fonte: Musixmatch
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