Velejávamos num lugar onde existem os conhecidos “salties”, que são os crocodilos de água salgada. Os nativos da região nos contaram que muitos imigrantes ilegais, ao escolherem o mar para furar as barreiras da fronteira, são surpreendidos por esses animais medonhos, capazes de abocanhar um motor de popa, quando estão famintos.
A recomendação que tivemos de velejadores experientes, era de ancorarmos na desembocadura de um determinado rio e planejarmos cuidadosamente as singraduras seguintes, até atingirmos a linha do Equador. Estávamos numa região do planeta que parece ter sido rasgada pela ação dos ventos e das correntes, de um modo que um verdadeiro labirinto foi desenhado ali, para confundir velejadores relapsos. Antes de acreditarmos nas recomendações, acontecia o seguinte: ou você esbarrava numa pequena ilha no meio do caminho, entre ilhas maiores, e encurralava-se em canais estreitos, repletos de rochedos e baixios, ou enredava-se em recifes de corais que pareciam pentes gigantes, aflorados acima d´água somente na maré vazante. Para complicar, a corrente nessa região é vigorosa. A amplitude chega a atingir seis metros. Isto quer dizer que, onde há seis metros de lâmina d´água na maré cheia, fica totalmente em seco quando a maré vaza. Daí a velocidade da água ser fortíssima na troca de marés. Significa que é perigoso ancorar ali, é perigoso navegar à noite, é perigoso navegar sem cartas náuticas, e definitivamente não é recomendável velejar por ali sem experiência. Contrariávamos todas essas leis.
Por falar nisso, a região parece a terra de ninguém. É transfronteiriça, meio de passagem de um oceano para outro, caminho secular de navegação para se atingir as duas metades mais populosas da Terra, e onde a sua nacionalidade é uma condição sem importância alguma. A não ser que você seja brasileiro, e viva equivocado, pensando que o sorriso pode lhe safar de qualquer apuro.
Ancorados na foz do tal rio, à noite, no cockpit de nosso querido veleiro, bebericando o nosso vinho de embalagem com torneirinha, fazíamos brincadeiras dos gritos que vinham do mato. Ouvíamos gritos, ouvíamos tiros, ficava tudo em silêncio, daqui a pouco ouviámos gritos novamente, tiros, e assim por diante. Bem mais tarde, durante o nosso cruzeiro, ficamos sabendo que eram caçadores de crocodilos e porcos do mato. Eles se espalhavam e seguiam um procedimento de gritar primeiro e atirar logo em seguida, que os demais se abaixassem, para não tomarem o lugar das caças. Um conselho nós seguimos à risca desde o início. Não irmos a terra firme, mas foi por puro medo de sermos presas dos “salties”.
Na passagem por um estreito, antes de dobrarmos um cabo e aproarmos para oeste, bem em cima da linha do Equador, éramos parte de um pequeno comboio formado por três barcos. O barco mais avançado, e mais perto da costa, também era tripulado por um casal. Um casal de gays, dois homens, que velejavam pelados, e abraçados. O outro barco era de um velejador solitário, um velhinho que se tornou nosso amigo, mais adiante, ao descarregar uma perigosa carga em nosso veleiro: seu tripulante caroneiro, um daqueles jogadores de rigby, cujo pescoço parece o tronco de uma árvore.
Toda a preocupação dessa perna da viagem consistia em não parar no meio do tal estreito. Condição quase impossível, tamanha a beleza selvagem do lugar, sedutora. Pois a correnteza ali era tenebrosa. 11 nós. Embora tenhamos ficado embasbacados ao assistirmos os dois namorados pelados ancorando ao velho estilo; uma âncora na água, outra feita nas árvores da margem. Isso é que ser macho.
Bem mais acima, num lugar chamado Thursday Island, a verdadeira terra de ninguém, terra vermelha, rica em bauxita, muita poeira, gente mal encarada e tudo mais, colocamos o bote na água. Nosso objetivo era comprar alguma verdura fresca e esticar as pernas. O primeiro impulso foi traçar uma linha reta, de nosso veleiro até a praia, mas não gostamos do lamaçal, e mudamos de idéia a meio caminho. Eu dizia que iria apoitar o bote num tronco deitado na areia, e a Helga me convenceu que sujaríamos todo o nosso veleiro ao retornarmos a bordo.
Chegando no píer do pequeno porto, com aparência de mal assombrado, encontramos um capitão que conhecêramos apenas pelo rádio VHF, muito lá atrás em nosso cruzeiro. Ele foi logo dizendo que faríamos a maior burrada, se fôssemos para a praia. Aquilo era um enorme crocodilo, que pensáramos podia ser o nosso porto seguro.
Imagine a nossa aflição ao remarmos de volta para casa.