Em dois Atos - Primeiro
A estrutura principal remete-nos a uma espécie de nave de outro planeta, caída na Terra fincada num parque infantil, com labirintos verdinhos, de brinquedo. Um cone metálico revestido com painéis de plástico e quando nele você entra, a surpresa; as paredes são pintadas por versos escritos à mão, você vai subindo, três andares, e se encantando com a amplitude e simplicidade, minimalismo ingênuo cuidado com delicadeza. Vestígios de atrações recentes, recitais, exposições, gente flanando com preguiça, é um desses lugares que não se quer sair nem dizer nada, onde o tempo parece diminuir o passo...
O passeio enfim nos leva para fora novamente e avista-se o caminho para uma ponte que cruzará a avenida em frente aquela torre fincada no chão. Falta fôlego, não pela falta de vírgula, não pela distância; é a beleza. Do outro lado da rua um aviso, é ali de fato que se vai entrar no mundo do Parque dos Poetas, uma bofetada bem na entrada, uma rocha com aquela máxima conhecida, mas que agora faz todo o sentido: a palavra e a pedra depois de lançadas não há como resgatá-las. E um susto, parece que se entrou num cemitério, pelo menos foi esta a minha impressão, um jardim da saudade, a grama no terreno ondulado, as pedras em pé parecendo marcar jazigos, com epitáfios identificando cada autor, uns poucos personificados em esculturas, há um nu ostentando apenas o chapéu, são poetas que resistiram à morte, e a gente pensa que se trata disso mesmo, a morada de poetas, minha leitura foi: - isto é um conluio de poesias, não se atrevam a nos ignorar aqui, lá fora vocês podem continuar cegos para a verdadeira essência da vida, aqui não; parecem brandir os poetas, é isso, as poesias começam a brotar da terra, você tem o ímpeto de desviar para não pisar nelas, você as lê, sente a presença do poeta ainda vivo na agonia da própria inspiração enquanto o chão vai vertendo versos, como se agora todos os poetas gritassem ao mesmo tempo, poetas de tempos distantes uns dos outros e a percussão de suas vozes a lhe rebentar no peito, lhe falta ar, a mim me faltou ar, eu chorei. Comecei a rezar em prosa, em voz alta, a recitar a minha emoção, acho que era poesia sangrando para fora de mim, acho que morri um pouco naquele instante e renasci de um outro jeito para sempre, nunca mais vou ler poesia sem lembrar daquela horta de palavras, o Parque dos Poetas de Oeiras.
Saí contrariado, olhando para trás e mergulhei com outros olhos no Tejo. Embarquei para uma navegada rio acima negociando com as suas curvas e o berço arenoso, não exatamente traiçoeiro como alguns insinuam, o berço do Tejo é antes de tudo o convite a uma lição de humildade. Você não tem o direito de invadir a intimidade de um rio como o Tejo e sair ileso, mas se o fizer como alguém que vai amar pela primeira vez, aí o Tejo passa a ser uma lembrança boa e só vai melhorando a medida que você lhe revira ao avesso e se entrega a ele também, com suavidade. Nota importante: podemos continuar chamando o Tejo de “ele”, mas ele é feminino, o Tejo é uma mulher.
É por isso que Lisboa parece abrir as pernas para o mar deixando todo o mistério de seu vão a enlouquecer o oceano aos seus pés, a querer entrar com as marés, as luas, e os mais indiscretos humores. A foz do Tejo, neste ponto é nua e atrevidamente antiga, parece puxar a barra das saias acima dos joelhos, a ponte 25 de Abril, puxa mais um bocadinho, acima dos quadris, a Ponte Vasco da Gama, o umbigo divisando a cidade antiga de um lado e do outro, os braços estendidos o Tejo vira-se de bruços e mostra a outra margem, o sul e tudo que possa prometer Alentejo, mas o meu destino era em direção ao ventre do rio, nas imediações da ponte Marechal Carmona. E fui subindo sem relutância, mas devagar, ainda madrugada, como alguém que acorda pelos odores da intimidade no meio da noite para amar outra vez porque amara antes de dormir... O sol ia crescendo no horizonte, mostrando a cidade tímida como todas as cidades na aurora e nossa proa mirava o poente. Nenhuma onda, as maré acabaram de passar uma pela outra, a enchente com a jusante, o rio ajoelhado feito a menina ao apanhar uma flor, e nosso barco subindo decidido até que, ao passarmos por sob a segunda ponte e vislumbrarmos os flamingos tomando café na margem norte, o primeiro impacto no fundo do útero do Tejo. Imperdoável, não deveríamos feri-lo assim distraídos, pensando que pudesse ser tão retilínea a nossa subida, virilidade estúpida. Bem onde parece ter existido um hímen num passado remoto, de séculos atrás, durante a ocupação de mouros, romanos e um cem números de amantes, aterramos nossa quilha. Me puni, fui eu o culpado, não por desaviso, mas por indulgência, um sonhador delinquente, um pecador reincidente, encalhamos. Mas como os poetas, as crianças e os loucos são perdoados em primeira instância, fiz uma prece, alguns ajustes de consciência e desencalhei rindo feito um menino para em seguida, não menos antes de apenas alguns graus do sol alevantar-se, encalhar novamente. Mais um perdão do generoso Tejo, parecendo minha mãe lá no céu, algumas voltas em torno de si mesmo e nosso barquinho desencalhou pela terceira vez e eu me entreguei. Daqui para frente, se eu quiser mesmo chegar lá hoje, tinha que ser “hoje”, só se alguém me levar pela mão. Afinal de contas eu trazia a bordo uma carga importante, a mesma que um dia eu carreguei em outros mares e pude levar a um porto seguro.
Foi assim que chegamos, do Parque dos Poetas à Fábrica das Palavras, em Vila Franca de Xira, navegando pelo Tejo, mas esta é uma história para o segundo ato...
Segundo Ato
A ANC - Associação Nacional de Cruzeiros organiza em parceria com a escola de vela Treino de Mar, no feriado de Páscoa, uma navegada em flotilha, da Doca do Espanhol (Alcântara) até Valada; recomenda o livro Roteiro do Estuário do Tejo para os novatos e oferece a segurança de um experiente guia, do barco Ventosga, o Leonel Carvalho, que vai com uma varinha mágica à frente mostrando onde cambar para bombordo ou estibordo.
O Tejo é cheio de bancos de areia que se movem sutilmente de acordo com as marés, que nascem com um temperamento para cada roupa da lua. E quando a lua se despe, por inteiro, é bom ter cuidado; quando ela fica tímida escondida atrás de si mesma, o cuidado deve ser o mesmo, isto é, ao subir o Tejo, fique atento, ao menor descuido a sua amada sente, e o seu barco pode encalhar.
Mas faltava a eternidade de uma semana, para a Páscoa, e o navegador desta linhas tortas que vos escreve pensou assim: - ora, nosso plano manda ir imediatamente para Vila Franca de Xira, compromissos em três diferentes vertentes nos chamavam já, trabalho, afazeres, vida, enfim, que ditam nosso calendário gregoriano com uma fome germânica e depois, para quem já navegou as águas difíceis do mar de corais, na Austrália, sem cartas náuticas, enfiou-se pelos canais apertados do norte australiano, aventurou-se no Mar da Carpentaria e Timor, pensei, talvez devagarinho eu possa subir o Tejo sozinho... Comprei o livro digital de José Gomes (um pdf, na verdade), o recebi à noite, estudei-o, na velocidade que era possível, e na manhã seguinte, aos primeiros raios de sol, soltamos as amarras. Exatamente do pontão da Marina de Alcântara de onde saem os barcos da Treino de Vela, e da empresa de charter Tejo Dreams. A ponte rotatória abriria os braços para passarmos as 07:30, então ficamos meia hora dando círculos em frente a Santa Cruz, réplica de Vasco da Gama, com os sonhos também em círculos em nossas cabeças. Havia um teórico a bordo e a previsão feita por ele era de enfrentar marolas dos cruzamentos do ferry boat que liga Lisboa a margem sul, Montijo e Seixal. Contudo, ao passarmos pelo Urban Beach, um pub à beira do rio que à noite abriga infelizes drogados nas suas circanias coalhadas de resíduos de contraceptivos e de drogas, nenhuma marola. Foi como um abracadabra, um ferry passou antes e se perdeu de vista, outro vinha vindo e passamos a sua frente com folga, um terceiro começou a sair do Cais de Sodré e já estávamos mais próximos da Ponte Vasco da Gama do que da Lisboa antiga para nós a esta altura.
Deveríamos passar por baixo dos estais da ponte, bem no meio do vão entre as duas pilastras fincadas no rio, ofereci este plano de navegação para mim mesmo, preterindo a calha sul, mais comercial, mais profunda mas muito mais demorada e longa.
Passar por debaixo de uma ponte é sempre uma emoção, assim, tiramos fotos de seus fundilhos, indiscretamente. E agora? Era ali que se iniciava de fato a navegação meticulosa por entre os canais do berço arenoso no Tejo. Se você leu no primeiro ato a analogia com o hímen, e se espantou, espantado fiquei eu naquele ponto do rio onde você não tem a menor ideia onde está se metendo. Penugem fofa e rasteira nas duas margens, água brilhando e com uma divisão central. No instrumento eletrônico de navegação a área verde no meio mostra um bico parecendo um folha de oliveira circundada por áreas azuis que deveriam ser as águas do Tejo. Camões deve ter recebido a inspiração para enfiar Vênus em Os Lusíadas, ao subir aquele monte para vislumbrar de lá a saída para o mar... Então bastaria meter-se bem no centro de tudo, manter equidistante as duas margens e ir devagarinho ollhando o instrumento de profundidade. Ledo engano. Ali naquele encanto há apenas uma lâmina de água que não cobre as pernas dos flamingos. E há flamingos nas duas margens. Isto é, aquelas incríveis aves ficam demarcando ironicamente o canal, mas somente bem mais tarde descobrimos,
as aves da margem a bombordo na subida devem ser visitadas de perto e as aves da margem oposta devem ser vistas bem de longe, sob o risco de você encalhar inapelavelmente. Encalhei. E deu um gostinho bem amargo na garganta, principalmente porque no Great Sand Strait, o maior banco de areia do mundo, em Queensland, eu encalhara e a vida a bordo não fica boa, até que a maré tire o seu barco da lama após seis horas de auto flagelo.
As marés dançam quando se encontram, a jusante rodopia para a foz enquanto a preamar a rodeia alçando-se em seus ombros, formando juntas redemoinhos. Percebendo aquela dança, intui que, se o leme estivesse livre, eu poderia girar sobre o próprio eixo central do barco, com o motor engrenado avante e com força, assim quem sabe eu sairia daquela situação de naufrágio emocional. Saí. Festa a bordo. Naveguei para fora e tolamente encalhei novamente, em cinco minutos. Como eu disse, para fora, em direção àquele grupo de flamingos com as pernas fora d´água no meio do rio, seria encalhe na certa e eu não saberia se não encalhasse eu mesmo, para crer. Desta vez o amargo na garganta foi terrível, losna. Cheguei a fazer os cálculos da miséria e talvez até algumas avarias para resolver quando em terra firme. Mas um tolo não se abate quando é tolo profissional, sonha e vence os seus próprios ímpetos. Se eu estivesse sozinho, ficaria naquele rio inspirador tentando não encalhar até que algo mais pessoal me vencesse completamente. Porém, eu levava a bordo uma carga sublime e ao olhar para aqueles olhos apaixonados, me pedindo para não vestir a minha fantasia de Apolo, decidi dar o grito de recuar. Recuar é preciso, na maioria das vezes quando a perda é um investimento em sabedoria, ainda mais quando há alternativas mais elegantes e menos cansativas, pelo menos isso, a lei do menor esforço. O problema na milha à frente, até a Marina Parque das Nações a nossa ré, era encalhar após ter decidido voltar, pois, ao encalhar recuando a tragédia psicológica para os vaidosos é dupla. Mas consegui alcançar a entrada da marina de onde fiz contato por telemóvel, como se estivesse sentado num café na Estação Oriente. Do outro lado da linha a voz amigável, salvadora, de Helena me avisou que na maré baixa não é fácil passar pelas comportas da marina. – Essa não! Que surpresa! Que aventura!
Dei alguns círculos em frente à marina enquanto Helena contactava Luis Ribeiro, o barqueiro, o arqueiro, o Capitão Rodrigo de o Tempo e o Vento montado numa lancha voadora para nos rebocar para um berço provisório. – Do you speak English? – gritou ele. – Claro – respondi – inglês nascido no Algarve, do latim vulgar, hoje em dia meio português sem acordo ortográfico e todos os hibridismos possíveis. Risos e ficamos velhos amigos naquele instante. – Então siga minha esteira, vamos fazer uma curva seca bem na entrada da comporta, desacelere lá – ia gritando ele e minha proeira traduzindo porque sou meio surdo, e naquele vento com o barulho de motor não entendia seu sotaque de Cascais.
Acomodados no berço para visitantes, como se fôssemos minhoca da terra, fomos direto à recepção conhecer a Helena, nossa alma salvadora, ora pois, Luis era apenas um anjo recomendado por Helena, e ele nos levaria até Vila Franca de Xira, após descobrirmos que seu primeiro passeio rio acima foi há uma década quando iniciava o namoro com a sua atual esposa. Desde então trabalhou em varinos, em lanchas, protagonizou festinhas com amigos rio acima e nas duas margens, enfim, aquele pedaço de Rio, para mim um mistério para ele uma rua da sua adolescência. É tudo mesmo relativo.
Poderíamos esperar a flotilha passar no sábado ou domingo e nos infiltrar, mas insisti que deveríamos continuar tentando naquela tarde, para podermos cumprir a agenda nos dias seguintes. Felizmente Luis foi capaz de convencer sua esposa a aceitá-lo chegar mais tarde em casa porque nos levaria até Vila Franca de Xira. E somente aceitamos que ele fosse nosso skipper, se levássemos Helena no passeio. - Isso, virou um passeio, e foi rápido. Saímos um pouco antes da maré encher completamente, o sol se pondo lentamente às nossas costas iluminando aquele cenário paradisíaco, eu tinha que cravar esta definição comum, gastá-la, estava indo para uma fábrica, eu poderia produzir outras palavras, quantas quisesse nos dias seguintes e até quando nem sei... Luis ao leme, nada para fazer, conversar, fazer perguntas, brincadeiras tolas, me encantar a cada curva do rio, e Luis fazia curvas onde não parecia haver dobra nenhuma, eram o profundímetro e os sinais em terra lhe avisando para mudar o curso abruptamente, para lá, para cá, desengrenar o motor, reengrenar, chegamos. Amarrados a 50 metros da Biblioteca de Vila Franca de Xira, da Fábrica das Palavras, produtividade à vista. “as-Shirush”, vocábulo árabe, aldeia da Idade Média, as ruas impregnadas de touros de um passado febril, suor de campinos, uma estação de trem com azulejos que contam histórias seculares, duas bibliotecas a menos de cem metros uma da outra, a marina dividindo espaço com a comunidade de pescadores, decorados por varinos, ou “barcos de bica” do século XIX, um deles é Museu, o Liberdade que leva turistas para avistar pássaros e novos ventos no coração, tudo isso convivendo com um centro de esportes, o Museu do Neorealismo, será este lugar surreal? E há mais, ao alcance dos olhos e das pernas em minutos, como as ruínas romanas a céu aberto, e outra ponte feito o Pêndulo de Foucault apontando direto para o Algarve lá embaixo, origem da Flor do Lácio. Polissêmico? Onomatopedicamente possível...