Você já reclamou alguma vez de uma companhia aérea? Ou pelo menos ficou insatisfeito com o atraso, a troca de lugar de embarque, conexões, bagagens, procedimento de “check in” e coisas do gênero? Ok, slip off your shoes and relax, vamos decolar para um lugar no céu onde você vai pensar duas vezes antes de reclamar novamente, ou pelo menos vai reclamar de forma diferente e, possivelmente, pela razão correta. Porque você talvez vem reclamando pela coisa errada.
A propósito, vai aqui a minha reclamação: por que as companhias aéreas “não” ensinam ao público a complexidade da malha aérea de transporte de passageiros e cargas, doméstica e internacional? Sobre as demandas regulatórias e patronais e, principalmente, as diferenças de infra estrutura instalada entre os dois pontos de decolagem e aterrissagem (quando um ponto é no USA e outro no combalido Brasil, ou do Galeão para o Salgado Filho), de uma indústria que mobiliza veículos de alta tecnologia e altíssimo risco humano e material, que oferece conforto (tão amplo quanto subjetivo seja o conceito de confortabilidade) e que se insere nos segmentos de negócios e lazer (i.e. turismo, férias, entretenimento, cultura, educação, governamentais, etc), se é que há alguma atividade humana em que uma companhia aérea não interaja em algum momento, na vida de todos nós sob o mesmo céu.
Uma das respostas à reclamação acima eu tinha há três décadas atrás (não tenho mais), quando dirigi a conta publicitária da Pan Am, assim como o lançamento de um Plano de Saúde que hoje é ASSIM. Nos dois ramos de negócio, as empresas não queriam chamar a atenção do seu “target” para nenhum tipo de problema, eram tão rigorosas que preferiam (nem sempre atendidas) utilizar ilustração de talentos, desenhos com linguagem de cartoon, em vez de imagens de pessoas de carne e osso, da mesma forma que era uma política mandatória não anunciar na mesma “página” ou próximo de uma notícia de catástrofe, acidente, qualquer evento público negativo. A ideia subjacente a entregar ao público era a de que a vida é um mar de rosas, é tudo uma felicidade só, e acreditavam que o público aceitava esta estratégia de comunicação, do contrário não comprariam o produto. Era o tempo das pesquisas de mercado, estudo de grupo, e ferramentas rombudas de comunicação & marketing, na pré-história, antes dos meta dados e webmetrics e programação em fractal.
Vai voar? Cuidado! Com o que vai dizer.
O mundo mudou, o céu não é mais o mesmo, o número de passageiros de aéreas multiplica de ano para ano, atingiu 4 bilhões anuais em 2017, segundo a ICAO, Organização Internacional da Aviação Civil e, se houve uma época que viajar de avião era um evento glamouroso, isto sim soa a desenho animado hoje em dia.
Imagine um cenário febril aéreo e terrestre, aviões decolando, voando e aterrissando, gente no ar e na terra carregando bagagens e sonhos, desejos e ambições, tudo sobre as nossas cabeças e ao nosso redor. E pensar que aeroportos brasileiros não dispõem de serviço de previsão meteorológica. Céus! Isto é a realidade da malha aérea, somente da aviação comercial (i.e passageiros e cargas). Mas nos andares inferiores das aerovias, ruas que não vemos no firmamento, voam em profusão jatos executivos, helicópteros de vários tipos e usos e uma nova categoria de pássaro mecânico: os experimentais, que vão de planadores a drones. Foquemos aqui apenas nos aviões da Latam, Gol, Azul e Avianca, as cia aéreas que competem neste efervescente mercado de viajantes. Nós todos.
Uma comparação, para decolarmos de fato: mantenha em perspectiva que na China voaram 550 milhões de pessoas no ano passado, enquanto no Brasil as quatro cias acima transportaram quase, bem perto, apenas 90 milhões. Projete hipoteticamente a diferença da frota chinesa para a nossa que é de míseros 504 aviões comerciais em dia com a documentação segundo a ANAC. Mesmo assim, você consegue imaginar esses quinhentos aviões competindo com os de companhias estrangeiras, pousando e decolando, sujeitos a diferenças climáticas de norte a sul, limitações de espaços no ar e muito mais limitações em terra, nos aeroportos, desde o comprimento das pistas ao número de “portões”, precários de itens básicos tais como “sistema de previsão meteorológica” e lugar para parquear um avião (optei aqui por limitar o uso de terminologia, jargões, do métier, do contrário iria complicar ainda mais), sistemas de raio X obsoletos na maioria dos aeroportos brasileiros, e por aí afora, você consegue imaginar a nossa frota e nossos profissionais das cias aéreas interagindo com isso tudo e nos atendendo? Se você viaja uma vez por mês de avião e acha que sabe tudo, imagine quem viaja uma vez a cada dois anos ou menos? Mas você sabe tudo mesmo?
Eu, por exemplo, não sabia que um cachorro pode viajar na coleira junto com o seu “dono” (cachorro pode ter um dono? Isso não seria escravidão? – Assunto para outra hora...), sentado (movimentando-se) ao seu lado, naquela configuração que você conhece bem de três poltronas. No meu caso eu estava ao corredor, que sempre prefiro, o cão da raça policial no meio e o seu acompanhante “na janela”. Um sujeito de aproximadamente 30/40 anos de idade, 1,70 m, caucasiano, como definem os americanos nos filmes, vestido com calça e camisa camufladas, ostentando barba por fazer e um comportamento “hyper-racer”. O episódio desdobrou-se em várias cenas, entre Los Angeles e Huston, envolvendo passageiros nas vizinhanças, atendentes de bordo e o comandante da aeronave, mas não vem ao caso aqui. Eu simplesmente não poderia imaginar que aquilo fosse possível.
Agora, tome estes exemplos recorrentes em voos comerciais: você está numa lista de espera e é avisado de que “não” há lugar no próximo voo, mas um amigo embarca e lhe envia um sms informando que a aeronave já está no ar e com vários assentos vazios; tudo pronto a bordo mas o avião não decola, enquanto um aviso no auto-falante insiste em localizar uma pessoa pelo nome completo; um voo sai do Rio, vai para Minas Gerais, depois à São Paulo e somente então parte para o destino na Europa, você não entende este ziguezague para trás; você vem do inverno no Canadá, decola de Montreal sem enxergar o aeroporto lá embaixo, após várias escalas cansativas chega ao Rio e não pode pousar por que há neblina sobre o Santos Dumont, você até comenta com o conhecido ao lado, já como um profundo conhecedor de viagens aéreas, que os pilotos brasileiros não sabem pilotar por instrumentos como os norte americanos; e você vai comentando mundo afora tudo o que você sabe sobre o assunto, e sem palavras sobre a variedade de eventos que não entende como possa acontecer, como, por exemplo, mais um, por que um incêndio numa casa de Arraial da Ajuda pode interditar o aeroporto de Porto Seguro. Acredite, cada exemplo acima é plausível, relaxe, faça a pergunta correta, de preferência de um jeito cordial. Só depois, avalie e cobre um reparo moral ou financeiro.
Engana-se também quem acredite que tempo bom de muito calor não seja problema para o embarque em aviões, pois, anote aí, por conta de precisar mais combustível para decolar, uma aeronave às vezes precisa esvaziar alguns assentos, 10, 15 e até 20 para tornar possível o voo... E desespero do incauto viajante na lista de espera.
Fala o planejador especialista em malha aérea
A primeira vez que ouvi a palavra “desregulamentação” me soou como um palavrão, e era. Depois a gente se acostuma e ela até é esquecida. De um modo geral, a coisa complicou quando a epidemia “deregulation” deflagrada nos USA se espalhou pela terra e ares. O objetivo era melhorar, conseguiu, mas em muitos aspectos, como diria Francis Bacon, para cada remédio surgem novos males, piorou. Pulemos então para o presente imperfeito: a equipe de planejamento da malha aérea de um companhia de voos comerciais projeta anualmente um quadro geral para cada estação (começa aqui a complexidade, a estação climática para cada região somada à sazonalidade que por sua vez é diferente em hemisférios e trópicos opostos); subsequentemente, para cada mês aquele quadro sofre ajustes, adaptações, atualizações, correções que serão repetidas com frequências diárias, e muito stress do staff da empresa.
Vale acrescentar que alguém na faixa etária acima dos 50 anos de idade, ainda que esbanje experiência não suporta mais esta tarefa hercúlea, assim como alguém abaixo do 30 ainda está na fase de ouvir o galo cantar sem saber aonde; sobram os profissionais nos meados 35 e 40 que, seguramente, passam a maior parte do tempo sobrecarregados de tensão e desafios. Mas é bom imaginar que a equipe de uma companhia aérea, neste departamento, tenha diversidade etária; (A) fundistas, (B) bons levantadores de peso e (C) aqueles que andam encurvados economizando levantar o pescoço para alertar de um risco grave, alçam uma sobrancelha e um esgar. Quando isso acontecer, a equipe deve ficar de alerta e agir rápido. É o corre-barata-voa.
Continuando, isto é, nasceu entre nós o sistema hub and spoke e nunca mais tivemos desculpa para não viajar. Tome por “hub” um aeroporto central e por “spoke” as rotas (voos) que deste hub são disparadas.
Uma companhia aérea que tenha como hub o aeroporto de Viracopos, em Campinas, fará voos de outras localidades passarem por ali, para disparar conexões para outras rotas a partir desse hub. Considere que, ao contrário dos USA em que uma companhia aérea pode literalmente adquirir parte do aeroporto para sua operação, possuindo assim o seu próprio hub, no Brasil os aeroportos são uma concessão cuja utilização é compartilhada; leia-se “gates”, hangares, dependências várias e até tratores para empurrar carretas de bagagens. Imagine agora a concorrência, isto é, a briga de gato e rato num ambiente aeroportuário, desde os balcões de “check in” aos mais recônditos lugares de rolamento de carga e pessoas, incluindo as áreas de segurança e suprimento. Adicione neste coquetel explosivo, de efeito dominó potencial, as normas regulatórias ambientais, securitárias, alfandegárias e trabalhistas. Como planejar (garantir), por exemplo, que os atendentes de voo descansem onze horas entre um voo e outro, como planejar as rotinas de inspeção em uma aeronave de modo que ela não voe vazia para uma localidade onde haja recursos estruturais e humanos para manutenção, ou reparos?
De longe ter esgotado os componentes de um planejamento de malha aérea e ainda não abordei o principal; a razão de tanta efervescência onde é impossível divisar o risco de lucros & perdas com o risco de um sinistro: a briga por tarifas e ofertas mais atrativas num segmento de mercado que cada vez mais faz as pessoas do planeta se locomoverem como nunca um nômade beduíno imaginara.
Esse beduíno atravessava o deserto para trocar uma pele de carneiro por algum bem que lhe faltava, olhando para o céu espantado com aquele azul, cor dos espectros de luz amigáveis, menos ofensivos ao olho humano, até o planeta ficar envolvido nesta névoa rarefeita, alaranjada, vermelha e muitas vezes rocha de tensão.