Você está na recepção de um laboratório para endoscopia e, mesmo contrariado, acompanha uma pessoa muito especial; salinha apertada, fila de espera, a televisão ligada, uma faxineira varrendo toca de leve em seus pés, enquanto borrifa no ar aromatizante (químico), ela mesma serve água, é copeira também, e auxilia a “médica” que conduz as endoscopias. Há meia dúzia de pessoas no lugar, não cabe mais do que isso. Levantei, dei um passo apenas e entrei no banheiro minúsculo, unissex e, urinando, tive o seguinte insight:
“... gravidades atenuadas banalizam o absurdo no cotidiano da existência coletiva. No Brasil, isso sempre foi latente, hoje é o padrão.”
Endoscopia é olhar para dentro, no caso, do corpo humano. Na prática, significa enfiar um tubo pela boca, nariz ou reto, com o objetivo de produzir imagens eletrônicas, padrão, para posterior interpretação também padrão. E aquela mesma funcionária polivalente ouve a “médica” gritar “traga aquele outro tubinho”. A moça polivalente sai de uma sala, também minúscula, por cuja porta entreaberta pode-se ver bolsas femininas empilhadas num armário, com uma mangueira preta na mão pendendo dos braços até os joelhos. Para receber aquele tubo pela garganta e esôfago adentro até quase a saída do ânus, a ponto mesmo de fotografar o esfíncter pelo lado interno, você deve receber, primeiro, uma dose de anestesia intravenal (este é o protocolo). Neste caso, a la Aldus Huxley, você experimenta uma leve dose de benzodiazepínico (na forma Midazolam, uma das três drogas utilizadas nos Estados Unidos no coquetel de execução de penas de morte), com o objetivo de atenuar a memória imediatamente pré operação endoscópica (para evitar dor, na execução da pena de morte também), combinada com uma dose de Petidina, depressor do sistema nervoso central, tão popular entre os médicos quanto qualquer outra banalidade ou hashtag. Apenas, a diferença é que essas drogas tem poder de lesar o corpo humano, o indivíduo... Uma produz perda temporária de memória, amnésia, a outra atua nas funções neuro-orgânicas sujeitando o corpo do paciente momentaneamente ao que interessa no tal processo eletro-mecânico de endoscopia, entre outros. E isso não é tudo, os efeitos potenciais dessas drogas (e agressões eletromecânicas) são abomináveis...
Informa o press release da entidade: “A AMDD foi estabelecida em 01/04/2009 como uma organização independente para imprimir velocidade e eficiência na advocacia de interesses de empresas anteriormente representadas pelo Sub Comitê de Aparelhos Médicos e Diagnósticos da Câmara Americana do Comércio no Japão (ACCJ), ... inclui acompanhamento e recomendações para escalões de governo e projetos de lei (...)” De volta às drogas, o que separa Leo Sternback (filho de farmacêutico, descobridor de benzodiazepínicos, empregado pelo Lab. Roche ) e Severin Schwan, atual presidente do conglomerado Roche (fabricante do Midazolam, que mata condenados a morte) de pacientes ingênuos e a[m]nestesia os pacientes com sensações de azia, certamente, ignorantes, é um espaço pequeno, igual ao daquele laboratório. Pequeno, mas trágico, igual a linha no chão que separa a fronteira dos Estados Unidos com o México. Não fará mal mencionar, quando Leo Sternback descobriu acidentalmente os efeitos dos benzodiazepínicos (1955), os executivos da Roche resolveram fazer testes em suas sogras e em onças do zoológico de New Jersey. Um jornal de fofocas, de Londres, sucessor do the Tatler (inventor do gênero Crônica) publicara na época artigo irônico com a seguinte manchete: “Veja o que a nova droga mágica descoberta pela Roche fez com as onças, imagine o que estará fazendo com as sogras dos executivos da empresa”.
Epidemia de Diagnósticos
"O que nos faz ficar doentes é a epidemia de diagnósticos", segundo o Dr. H. GILBERT WELCH da Universidade de Berkeley. "Nós americanos estamos mais longevos do que nunca, no entanto estamos cada vez mais sendo diagnosticados como doentes. Como isso pode acontecer?" - continua ele em um artigo para introduzir seu livro sobre o diagnóstico e tratamento de dos vários tipos de câncer - "somos os maiores investidores do mundo em recursos para o sistema de saúde. Alguns resultados são produtivos, curam doenças e aliviam o sofrimento, mas também produzem mais diagnósticos, uma tendência que tem se tornado uma epidemia."
"Uma fonte desta epidemia é a "medicalização" da vida diária. A maioria de nós experimenta sensações físicas ou emocionais desagradáveis e, no passado, essas sensações eram consideradas parte de nossas vidas. Entretanto, cada vez mais essas sensações vêm sendo consideradas sintomas de doenças. Experiências cotidianas como a insônia, tristeza, dormência nas pernas e falta de desejo sexual hoje são diagnosticadas assim: distúrbio do sono; depressão; síndrome das pernas irrequietas e disfunção sexual.
E é possível que a maior preocupação seja a medicalização da infância. Se as crianças tossem após se exercitarem, elas têm asma; se elas apresentam dificuldade par ler, são disléxicas; se elas são infelizes, é porque estão em depressão; se alternam entre infelizes e eufóricas, têm distúrbio de bipolaridade.
Se, por um lado esses diagnósticos podem beneficiar algumas pessoas com severos sintomas, por outro deve-se questionar sobre o efeito nas muitas pessoas em que esses sintomas são apenas brandos, intermitentes ou transitórios.
A outra fonte é o esforço em descobrir doenças antecipadamente. Enquanto no passado os diagnósticos eram reservados para doenças graves, hoje se faz diagnósticos em pessoas sem sintoma qualquer, aquelas com a chamada "predisposição" ou que fazem parte dos "grupos de risco.
A tecnologia avançada permite aos médicos procurarem de modo invasivo por aquilo que possa estar errado. Especialistas vêm expandindo constantemente os conceitos de doença: parâmetros para diagnóstico de diabetes, hipertensão, osteoporose e obesidade têm decrescido nos últimos anos. O critério para colesterol normal tem caído múltiplas vezes. Com essas mudanças mais da metade da população pode ser diagnosticada com doenças...
Muitos de nós somos "predispostos a certas doenças" das quais, na realidade, nunca adoeceremos, e, todos nós estamos em algum "grupo de risco".
O artigo do Dr. Gilbert é impressionante, fiz contato com ele e recebi dois exemplares de seu livro para traduzir. Ofereci a duas editoras que não se interessaram. O Dr. Gilbert conclui que o real problema com a epidemia de diagnóstico é que ela leva à epidemia de tratamento. Mais diagnósticos significa mais dinheiro para a indústria farmacêutica, hospitais, grupos de médicos e advogados. Pesquisadores e até as organizações do Instituto Nacional (americano) da Saúde orientadas para doenças asseguram sua estrutura (e financiamento) promovendo a detecção de "suas" doenças."
O arcabouço dessa indústria é ardiloso. Impõe preocupações médico-legais, que alimentam a epidemia. Uma falha por não diagnosticar pode resultar numa ação judicial, embora não haja risco de punição correspondente para o caso de uma super exposição a diagnósticos. Não é todo o tratamento que produz benefícios , mas quase todos podem lesar. Para as doenças severas, essas lesões são relativas dados os benefícios potenciais do tratamento. Mas para aqueles que experimentam sintomas brandos, os malefícios se tornam muito mais relevantes.
O Dr. Gilbert alerta para o fato de que os médicos podem ser falsos amigos dos pacientes sem o perceberem, e ele propõe uma nova mensuração da saúde, um esforço de mentalidade de não doença, de reduzir a necessidade de serviços médicos, uma inversão de paradigma.
Este relato, e a releitura da correspondência com o Dr. Gilbert, é uma parte irrisória de tudo que pude refletir daquela manhã trágica em que mais uma vez constatei a perda da natureza como referência para a medicina como arte. Ao contrário do que alguém possa pensar, medicina não é ciência, é uma arte. Ciência são os estudos específicos sobre o corpo humano, a saúde, os males chamados de “doenças”.
Mas a prática da medicina verdadeira é uma utopia, pois, é possível um médico maravilhar-se diante de cada paciente (indivíduo), uma maravilha da natureza? Nós mesmos, temos a noção da complexidade espetacular que somos enquanto seres vivos diferenciados. Um princípio de arte e obra divina? O que ingerimos, como nos tratamos uns aos outros, o que fazemos de nossas vidas?
Lamento pela insanidade (prefiro achar que seja insanidade) de muitos seres humanos que se dizem médicos, mas banalizam essa prática ao olhar seus pacientes de fora, de longe, pior, numa folhinha de papel e romanticamente escreverem com letras inelegíveis a prescrição de “exames” laboratoriais, e drogas.