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Luís Peazê

China Começa a Guerra do Lixo


Se é Made in China, é barato, e eu também já ouvi frases tais como “é vagabundo”, “não presta”, “vai estragar logo”. Mas sempre há o contraditório, segundo o Direito Canônico. A pendenga é séria. Vista luvas e máscara, a montanha de lixo fede, é feia e tóxica. Em frente, leiamos:

No ano passado, quando a Comunidade Européia elevava as metas de reciclagem para os países membros, atracava no porto de Setúbal, Portugal, a bordo do cargueiro italiano Vento de Tramontana, o primeiro lote de 20 mil toneladas de lixo do sul da Itália, da Campânia, a região com maior densidade populacional da Bota. E era lixo mesmo, não se tratava de importação de resíduos para reciclagem. Em torno da mesma época, a ZERO Associação Sistema Terrestre Sustentável revelava na imprensa local que Portugal não recicla seus resíduos, seus órgãos oficiais de saneamento e meio ambiente produzem relatórios incorretos, discrepantes e irreais sobre o tipo de lixo coletado, descartado em aterros sanitários e reciclados.

Já, nas primeiras horas de 2018, a China largou a bomba na Inglaterra que ecoou na Nova Zelândia, um disparo anunciado em meados de 2017. Banir a importação de 24 tipos de resíduos. Você leu corretamente: há um mercado em franca ebulição de exportação e importação de resíduos. E os ingleses, kiwis e muita gente bacana eram fornecedores de lixo para a China. Há uma indústria operando a todo vapor, pertencente a Economia Circular, produzindo produtos com insumos desta balança comercial; no Brasil, por exemplo, e não poderia ser em outro país, o do Carnaval onde o Lixo é um Luxo, há abundância disso nas ruas, os aterros sanitários ilegais proliferam e o país importa resíduos descartados porque a indústria de produtos com base em reciclados precisa de matéria prima; e não há lixo suficiente nas prateleiras (leia-se Centros de Reciclagem), estão todos espalhados pelas cidades, provocando inundações, adoecendo comunidades pobres, intoxicando rios e lagoas, desaguando no mar.

A reação em cadeia a partir da decisão do governo chinês afetou, em apenas uma semana de seu anúncio para o mundo, a indústria planetária multibilionária de processamento e aproveitamento de resíduos. E os 24 tipos de resíduos banidos de importações são apenas o começo. Os números dessa indústria são astronômicos e, quando este observador romântico gravou um vídeo caseiro referindo-se a “uma onda de lixo desabando sobre nós”, não estava exagerando.

A bomba chinesa deixou a Rainha da Inglaterra com os cabelos em pé. Em sete dias o Reino Unido viu seus aterros sanitários crescerem montanhas de lixo e no ruidoso parlamento britânico já são ouvidos os protestos quanto à queima desse lixo, grande parte tóxico, em território inglês. Simon Ellin, CEO da Associação de Reciclagem do Reino Unido, declarou para o Telegraph, no dia primeiro de 2018, que a medida da China “foi uma bofetada... dependemos de China para absorver o nosso lixo por tanto tempo, não temos um mercado doméstico de reciclagem”. Nos últimos cinco anos, o Reino Unido exportou para a China uma média de meio milhão de toneladas de lixo/ano, só de resíduos plásticos. Em 2016, a China reciclou perto de 8 milhões de toneladas de resíduos plásticos, isto é mais da metade de todo o plástico reciclado do mundo. A primeira reação dos ingleses foi bater à porta dos países vizinhos lá na Ásia, longe da Inglaterra, obviamente; Malásia, Vietnam e Indonésia, por ali, próximo da Baía de Bengala, onde existe, no sul da Índia, um aterro de navios, ou, cemitério de navios, ou seja, parque de desmonte da indústria naval, outro lixo grave, complexo. Pode assustar-se, é isso mesmo, quando se fala de lixo a ideia é visualizar tudo misturado, jogado fora com desleixo, o conteúdo de uma lata de lixo é mesmo difícil de entender, como a atitude dos usuários dos produtos que acabaram no lixo. Tente desenvolver em casa um sistema de separação por tipos de descartes e verá que isso pode ser de fato um capital na sua mão. Complicado, todavia, de lidar.

Revolvendo mais um pouco a caçamba do lixeiro, no Brasil, este navegante que escreve fez uma pesquisa empírica certa vez na Ilha remota de Fernando de Noronha, a 300km da costa de Recife. Caminhei uma hora com um saquinho de plástico na mão coletando pontas de cigarro e consegui garimpar mais de um quilo de descartes de fumantes na natureza. Noutra oportunidade, promovendo uma regata ecológica na Escola Naval do Rio de Janeiro, duas equipes de estudantes universitários e futuros oficiais da Marinha de Guerra, mescladas em apenas dois veleiros, coletaram num período de duas horas, do espelho d´água da Baía da Guanabara, nas imediações da Praça XV e do Pão de Açúcar, perto de 500 kg de lixo. Não caberia mais nos veleiros, as meninas e meninos universitários e os jovens aspirantes a oficiais não conseguiriam mesmo coletar mais e manter as embarcações velejando, era, afinal, uma brincadeira.

Retornando ao filme de terror de verdade, a China vinha sendo desde a década de 80 o maior importador de “lixo estrangeiro” do mundo, como é chamado em Pequim o insumo para sua indústria de reciclados, reaproveitados, e matérias primas que consumiriam muito mais energia (e outros recursos) para a sua produção do que aquela que era consumida para reaproveitamento. A farra para os exportadores de seus problemas acabou. Porque era uma solução para a China, mas ao mesmo tempo era um problema crescente, dada a dificuldade de seleção dos resíduos importados e, mais grave ainda, invasão de toxidade, doenças e poluição de toda a sorte para saúde dos chineses. Esse problema veio à tona quando, em 2003, uma pesquisa revelou que 80% das crianças nas cidades chinesas apresentavam chumbo na sua corrente sanguínea. Imagine à vontade o entorno. E veja aqui o vídeo premiado sobre o assunto.

Um pulo de volta da Ásia para a América do Sul, o Brasil importa mais de 200 mil toneladas de lixo por ano, a um custo aproximado de US$ 260 milhões. Deixa de ganhar em torno de US$ 15 bilhões por não reciclar 80% de seus resíduos sólidos gerados em território Macunaíma, gerando problemas para a população por falta de coleta seletiva - o país recicla/reaproveita apenas 20% do seu descarte. A indústria brasileira, que reutiliza os descartes como matéria-prima na fabricação de carros, vestuário e outros, demanda mais do que os caminhões de lixo conseguem coletar e as unidades de reciclagem conseguem processar. Por sua vez, nas cidades grandes e pequenas são consórcios que vencem licitações duvidosas que fazem a coleta, financiam com dinheiro público a compra da frota de caminhões especiais e, não raramente, utilizam mão de obra das folhas de pagamento das prefeituras numa engenharia de repasse de verbas intrincada, para não dizer uma leviandade. Por fim, dos 5.564 municípios brasileiros, apenas menos de 400 possuem coleta seletiva. Reza uma lenda que há um projeto tramitando no Congresso Nacional para tornar lei a seletividade de resíduos e descartes em território nacional.

Ficam algumas perguntas em aberto: para onde irá o lixo que era, até dezembro último, exportado para a China? A que preço para quem compra, a que custo para a saúde de quem vive no seu destino? Os Estados Unidos, por exemplo, vem despejando lixo radioativo em duas ou três ilhas do Oceano Pacífico, e já vimos que esse mercado de importação e exportação de lixo utilizava massivamente o meio marítimo para trafegar. Será que alguma coisa cairá pelo caminho, enquanto as forças de mercado não se equalizarem, depois dessa bomba disparada pela China?

Quando resumimos o assunto nesta palavrinha de quatro letras, é preciso lembrar que “lixo” reaproveitável, reciclável, reutilizável vai desde o aparentemente simples papel (que envolve florestas plantadas, produção e transporte de celulose e o próprio papel), metais como o alumínio e o cobre, os plásticos e outros tantos. Matéria prima. Riqueza. Combustível da Economia Circular.

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